Ao tempo natural e cíclico das estações e do clima se justapõe – e por vezes se contrapõe – a percepção da duração registrada pelos homens. O calendário, instrumento de domesticação e de domínio do tempo, submete a memória pessoal e coletiva. É no conflito entre tempo natural, tempo percebido e tempo mensurado, que se insinua a idéia de História. Noção que se torna ainda mais complexa, quando se leva em conta a existência de um dia-a-dia das sociedades humanas e a necessidade científica de descrevê-lo e interpretá-lo.
Mas qual memória (e que tempo) deve-se priorizar, nos estudos históricos? Individual ou coletiva?
Transcendendo a História como ciência e como culto público, ao mesmo tempo à montante (enquanto reservatório de História, rico em arquivos e documentos/monumentos) e à jusante (pois é eco sonoro – e vivo – do trabalho histórico), a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades contemporâneas.
Como diria Leroi- Gourhan[1]:
“A memória coletiva é biologicamente tão indispensável à espécie humana como o condicionamento genético o é às sociedades de insetos: a sobrevivência étnica funda-se na rotina; o diálogo que se estabelece suscita o equilíbrio entre rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital necessário à sobrevivência do grupo, o progresso, a intervenção das inovações individuais para uma sobrevivência melhorada”.
A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje.
Mas a memória coletiva é não somente uma conquista: é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é primordialmente oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.
O caso da historiografia etrusca constitui talvez a ilustração de uma memória coletiva tão estreitamente ligada a uma classe social dominante que a identificação dessa classe com a nação significou ausência de memória, quando a nação desapareceu:
“Não conhecemos os etruscos, no plano literário, a não ser por intermédio dos gregos e dos romanos: não nos chegou nenhuma relação histórica, admitindo que esta tenha existido. Talvez as suas tradições históricas ou para-históricas nacionais tenham desaparecido com a aristocracia que parece ter sido a depositária do patrimônio mural, jurídico e religioso da sua nação. Quando esta deixou de existir enquanto nação autônoma, os etruscos perderam, ao que parece, a consciência de seu passado, ou seja, de si mesmos”[2].
Veyne[3], estudando o evergetismo (prática de atividades altruístas por parte dos ricos e poderosos) grego e romano, mostrou admiravelmente como os ricos “sacrificaram então uma parte de sua fortuna para deixar uma recordação do seu papel”.
Num estudo inédito consagrado aos Beti dos Camarões meridionais, o escritor Mongo Beti[4] relata e ilustra a estratégia que permite aos indivíduos ambiciosos e empreendedores “adaptar” as genealogias a fim de legalizar uma hegemonia contestável.
Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos (orais e audiovisuais) não escaparam à vigilância dos governantes, que se dedicam a controlar esta memória tão estreitamente como os novos utensílios que a produzem como, por exemplo, o rádio e a televisão.
Diante da ação dos grupos dirigentes em busca do controle sobre a memória coletiva, Triulzi apresentou um contraponto: ele denunciou a subordinação da antropologia africana tradicional às fontes “elitistas” e nomeadamente às genealogias manipuladas pelos clãs dominantes. Triulzi decidiu, em contrapartida, pesquisar a memória do homem comum africano. Propôs o recurso, na África (como acho que deveria acontecer aqui, no Brasil),
“às recordações familiares, às histórias locais, de clãs, de famílias, de aldeias, às recordações pessoais..., a todo aquele vasto complexo de conhecimentos não-oficiais, não-institucionalizados, que ainda não se cristalizaram em tradições formais... que de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou de indivíduos (recordações e experiências pessoais), contrapondo-se a um conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos”[5].
Cabe, em suma, aos profissionais científicos da memória (antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos), fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários de sua objetividade científica.
esse cara é foda
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